Audiência pública repudia PEC que impede mudança da letra do Hino Riograndense

Letra do hino do estado do Rio Grande do Sul possui o verso racista “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, da Assembleia Legislativa, promoveu uma audiência pública para debater a letra do Hino Riograndense, que possui o verso racista “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

O encontro, proposto pela deputada Bruna Rodrigues (PCdoB), lotou o Plenarinho, no início da noite desta segunda-feira (3), com a participação de ativistas do movimento negro, historiadores, sindicalistas e militantes dos movimentos antirracista e antifascista, dentre outros.

O debate, coordenado pela presidente da Comissão, deputada Laura Sito (PT), ocorreu na véspera da votação em primeiro turno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 295/2023, que institui a imutabilidade dos símbolos do Rio Grande do Sul. A sessão plenária começa às 14h desta terça-feira (4).

Bancada Negra e entidades defendem rejeição da PEC

Deputados e entidades que representam o povo negro defenderam a rejeição da PEC, apresentada pelo deputado Rodrigo Lorenzoni (PL) e outros 19 parlamentares, e a realização de um amplo debate com toda a sociedade gaúcha sobre a alteração da letra do hino.

“O pano de fundo desta proposta é a chegada da bancada negra na Assembleia Legislativa. Sempre estivemos neste território, servindo e limpando. Mas pela primeira vez, numa bancada. E isso desacomoda os que sempre dominaram este espaço. A PEC é uma forma de dizer que este não é o nosso lugar”, afirmou Bruna, que junto com Laura Sito e o deputado Mateus Gomes (PSOL) integra a primeira Bancada Negra no parlamento gaúcho.

Laura Sito frisou que a Constituição Estadual já protege os símbolos gaúchos. Ela ressaltou que o movimento não é contra a tradição cultural gaúcha, mas que o povo negro tem o direito de ter “nos símbolos do estado sua dignidade garantida”.

“Estamos diante da PEC do cala a boca; de uma clara tentativa de impedir que façamos este debate”, criticou Laura.

Já o deputado Mateus Gomes lembrou que nenhum país democrático tornou seus símbolos imutáveis e que há inúmeros exemplos de alterações no decorrer da história. “A PEC desvaloriza a contribuição de nosso povo para a cultura gaúcha e busca apagar a presença dos negros na história do Rio Grande do Sul”, sintetizou.

Ele defendeu a rejeição da PEC e a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 2/2021, de autoria do deputado Luiz Marenco (PDT), que exige a realização de um referendo para alteração dos símbolos do RS.

Estrofe racista não representa povo negro

A secretária de Combate ao Racismo da CUT-RS, Isis Garcia, ressaltou a importância da bancada negra no parlamento gaúcho. “Nós agora temos de fato representatividade na Assembleia. Ninguém mais vai decidir por nós, pelo povo preto. Nós temos uma bancada que nos representa e sabe quais são as pautas pertinentes e estratégias para melhorar as nossas relações nessa sociedade tão desigual.”

Para Isis, “o hino é uma narrativa que vai nos acompanhando desde a idade da infância e é mais do que pertinente e urgente a mudança dessa estrofe, que não nos representa e não traz a realidade do nosso povo e o valor do nosso povo”.

Aspectos históricos do hino

O ex-deputado e historiador Raul Carrion sustentou que, caso a PEC seja aprovada, haverá espaço para que o resultado seja questionado na Justiça. Segundo ele, o hino a que a PEC se refere não é o verdadeiro, criado para comemorar a vitória dos farroupilhas na Batalha de Rio Pardo, em 1838.

O hino, que já é protegido pela Constituição, de acordo com Carrion, é o Hino Nacional (da República Farroupilha), publicado no jornal O Povo, em 4 de maio de 1839. A versão, conforme Carrion, não contém o verso considerado racista.

Ele lembrou que a letra atual foi escrita pelo poeta Francisco Pinto da Fontoura, mais conhecido como Chiquinho da Vovó, tendo sido escolhida para o hino em 1935, durante os festejos dos 100 anos da Revolução Farroupilha.

O historiador Rivair Macedo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), elaborou um parecer para o Conselho de Desenvolvimento do Povo Negro em que sustenta que os símbolos têm a função de produzir adesão e coesão social. E, quando isto não acontece, eles devem ser repensados.

Sobre a letra do hino, Macedo argumentou que o debate não se restringe apenas à conjuntura do século 19, quando foi elaborada, mas à perpetuação de uma linguagem senhorial e escravocrata na atualidade.

O jornalista, historiador e escritor Juremir Machado da Silva, disse que a polêmica acerca do hino consta no seu livro “História Regional da Infâmia”. Para ele, “é uma letra ofensiva que faz, de todos aqueles que foram escravizados, covardes e pessoas que não tem virtude”.

“Não vejo nenhuma razão para não alterar a letra. Por que continuar fazendo do hino algo que é para ser motivo de orgulho uma maneira de ofender os valorosos negros que lutaram com os farroupilhas e foram traídos no Massacre de Porongos? Acho que já é hora de mudar. Nada na história precisa ser permanente”, falou Juremir.

PAULO GARCIAPaulo Garcia

Mudança da letra é uma reparação histórica

A audiência foi marcada por manifestações de dezenas de representantes de entidades da sociedade civil, inclusive, da presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho, Ilda Borba Goulart.

Ela disse que o MTG está disposto a ser parceiro do debate sobre a mudança do hino, desde que seja baseada num estudo aprofundado do tema por historiadores, músicos e letristas. “Prezamos pela democracia e pelo aperfeiçoamento de nossa cultura”, declarou.

Para a representante da Frente Negra Gaúcha, Maria Helena dos Santos, “a mudança do trecho racista do hino é uma questão de reparação história” e deve ser discutida com toda a população gaúcha.

A integrante da Sociedade Brasileira do Direito Antidiscriminatório, Eduarda Garcia, acrescentou que a letra funciona como “um gatilho cognitivo em qualquer contexto, pois o único povo escravizado e traído no Rio Grande do Sul foi o povo negro”. Ela enfatizou que a letra do hino “submete negros e negras a constrangimento ilegal”, motivo pelo qual não se levantam mais durante sua execução.

Já o representante do Instituto de Acesso à Justiça, Cleidson Renato, afirmou que parcela significativa da população gaúcha se sente ofendida pelo Hino Riograndense e que não há “tradição horrorosa que não possa ser mudada”. Ele citou exemplos de alterações de símbolos que ocorreram em Ouro Preto, Austrália e Mississipi.

No final da audiência, foi apresentado um vídeo com a gravação do trecho do hino modificado, a partir de proposta do poeta e professor Oliveira Silveira. Na nova versão, o verso racista foi substituído por “povo que é lança e virtude, a clava quer ver escravo”.

Veja a lista dos 20 deputados que assinam a PEC

Rodrigo Lorenzoni (PL)

Marcus Vinicius Almeida (PP)

Paparico Bacchi (PL)

Capitão Martim Andreani (Republicanos)

Guilherme Pasin (PP)

Delegado Rodrigo Zucco (Republicanos)

Claudio Tatsch (PL)

Eliana Bayer (Republicanos)

Gustavo Victorino (Republicanos)

Adriana Lara (PL)

Gaúcho da Geral (PSD)

Felipe Camozzato (Novo)

Claudio Branchieri (Podemos)

Kelly Moraes (PL)

Sergio Peres (Republicanos)

Joel Wilhelm (PP)

Issur Koch (PP)

Elizandro Sabino (PTB)

Frederico Antunes (PP)

Airton Lima (Podemos)

Assista à transmissão da TV Assembleia

 

* com Olga Arnt – AL/RS

 

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